A onda dos sonhos

Como a chegada das mulheres à Pipeline, a onda proibida, ajuda na busca por igualdade no surfe

Gustavo Setti e Marcello De Vico Colaboração para o UOL, em São Paulo e Santos Keoki Saguibo / World Surf League

A brasileira Tatiana Weston-Webb se prepara para disputar, a partir deste sábado, a primeira etapa da história do Circuito Mundial Feminino de Surfe 100% realizada em Pipeline, no Havaí, a onda mais famosa do mundo. Os 100% da frase fazem sentido pelo que aconteceu no ano passado: foi só depois da morte de um surfista amador por ataque de tubarão na baía de Honolua, onde estava acontecendo a etapa de Maui do circuito feminino, que os organizadores aceitaram levar uma competição completamente feminina para Pipeline.

Antes, contavam-se nos dedos as mulheres que já tinham competido na onda mais famosa do planeta. Para isso, precisavam ser convidadas em torneios masculinos. Era uma honra para poucas.

Hoje, a história será diferente. Pipe entrou definitivamente no calendário feminino depois do que aconteceu em 2021 e, pela primeira vez, os circuitos feminino e masculino, organizados pela WSL, a Liga Mundial de Surfe, terão etapas iguais. As premiações já são iguais desde 2019. Agora, as ondas também.

"As meninas vão se jogar, e algumas delas vão pegar o melhor tubo da vida em Pipe. É a oportunidade incrível de surfar com pouca gente, sem que venha algum surfista local que não vai te deixar entrar na onda. Vai escolher a onda que quiser", diz Silvana Lima, duas vezes vice-campeã mundial, em 2008 e 2009.

Keoki Saguibo / World Surf League
REUTERS/Sergio Moraes
Jacqueline Silva foi vice-campeã do Circuito Mundial em 2002

"No feminino, metade da praia ia embora"

Surfar as mesmas ondas que os homens é uma conquista que vinha sendo moldada a muito suor. Tita Tavares foi bicampeã do WQS, divisão de acesso ao CT, como o Circuito Mundial é chamado. E sentiu a indiferença pela categoria feminina dos próprios surfistas profissionais. Ela lembra que, nos torneios, os homens exigiam cair na água na melhor hora do mar — um deles era o tricampeão mundial Andy Irons.

"O feminino ficava em segundo plano", relembra. Se já havia diferenças na elite do surfe, a situação era ainda pior em campeonatos menores.

Eu lembro que, antigamente, quando eu competia a fase de amador, metade da praia ia embora quando começava o feminino. Não era uma coisa muito atrativa, que te prendia na praia para ver, a não ser que tivessem altas ondas, porque aí todo mundo conseguia surfar bem. Mas quando era com condição difícil, as meninas tinham mais dificuldades. Os homens tiravam leite de pedra".
Jacqueline Silva, vice-campeã do Circuito Mundial em 2002

"Mas hoje isso mudou. Até numa condição ruim, as meninas estão quebrando. Numa condição boa, nem se fala. Está o máximo", comemora Jacqueline.

Eu acho incrível, é uma oportunidade que as meninas estão tendo de surfar sem crowd [sem muitos surfistas na água], é um sonho. Claro que algumas têm dificuldade com tubo, uma onda rápida, pesada, perigosa. Vejo Pipe e Backdoor mais tranquila do que Teahupo'o. Acho bem mais perigoso. Já surfei os dois".

Silvana Lima

Keoki Saguibo/World Surf League via Getty Images Keoki Saguibo/World Surf League via Getty Images

Pipe para as mulheres. Por que não?

Pipeline, junto com Teahupo'o, no Taiti, são duas das ondas mais pesadas do mundo. Sem o preparo ideal, há riscos de acidentes. Nos bastidores do mundo do surfe, existia o receio em colocar algumas meninas para surfar nessas ondas, o que acabou atrasando a entrada especialmente de Pipeline no circuito feminino.

Mas os anos passaram, as meninas foram conquistando o seu devido espaço e, com isso, passaram a dividir estes locais com os homens cada vez mais. A evolução veio naturalmente. "Acho que é por essa evolução do nível do surfe feminino que hoje a WSL se sente confortável em colocar as meninas em Pipeline, no Taiti... Eles estão acompanhando o nível e a galera já se sente mais confortável para colocar as meninas para surfar esse tipo de onda", opina Jacqueline.

"Sem treinar, você não consegue evoluir. É questão de oportunidade. Antes as meninas não tinham e agora estão tendo", acrescenta Brigitte Mayer, primeira brasileira a competir no Circuito Mundial, em 1990.

Acho que [a desigualdade entre homens e mulheres] está melhorando bastante, mas está faltando uma boa performance das mulheres para ganhar esse respeito formal, digamos assim. Acho que a gente tem que aproveitar e gastar mais tempo em ondas como Pipeline e Teahupo'o para continuar evoluindo e assim ganhar mais respeito".

Tatiana Weston-Webb, única representante brasileira no CT em 2022.

Calendário 2022, o mesmo para homens e mulheres

  • 1

    Billabong Pro Pipeline - 29 de janeiro a 10 de fevereiro - Pipeline (Havaí)

  • 2

    Hurley Pro Sunset Beach - 11 a 23 de fevereiro - Sunset Beach (Havaí)

  • 3

    Meo Pro Portugal - 3 a 13 de março - Peniche (Portugal)

  • 4

    Rip Curl Pro Bells Beach - 10 a 20 de abril - Bells Beach (Austrália)

  • 5

    Margaret River Pro - 24 de abril a 4 de maio - Margaret River (Austrália)

  • 6

    Quiksilver Pro G-Land - 28 de maio a 6 de junho - G-Land (Indonésia)

  • 7

    Surf City El Salvador Pro - 12 a 20 de junho - Punta Roca (El Salvador)

  • 8

    Oi Rio Pro - 23 a 30 de junho - Saquarema (Brasil)

  • 9

    Corona Open J-Bay - 12 a 21 de julho - Jeffreys Bay (África do Sul)

  • 10

    Tahiti Pro - 11 a 21 de agosto - Teahupo'o (Taiti)

  • 11

    Rip Curl WSL Finals - 8 a 16 de setembro - Lower Trestles (Estados Unidos)

Pierre Tostee /Getty Images
Andy Irons, campeão mundial do circuito masculino em 2002

Em valores, como era 20 anos atrás

Vice-campeã em 2002, Jacqueline Silva levou US$ 33,8 mil em premiação ao longo daquela temporada em etapas tanto da elite quanto da divisão de acesso. Mais até do que a australiana Layne Beachley, campeã do circuito feminino daquele ano, que arrecadou US$ 32,2 mil ao longo da temporada. O campeão mundial masculino terminou o ano com US$ 197,8 mil em premiações. Naquele ano, homens tinham duas vezes o número de etapas para competir em relação às mulheres.

Para efeito de comparação, a etapa feminina de Fiji do WCT 2002 distribuiu US$ 60 mil em premiação. A campeã ganhou US$ 10 mil. Na versão masculina da mesma etapa, o campeão da etapa recebeu três vezes mais. E o valor total da premiação entre todos os surfistas era de US$ 226 mil.

Há três anos isso mudou. Desde 2019, todos os eventos organizados pela entidade têm premiações iguais para homens e mulheres. Em 2022, os vencedores das cinco primeiras etapas do Circuito Mundial receberão US$ 80 mil, enquanto os vencedores dos cinco eventos após o corte no meio da temporada receberão US$ 100 mil por evento. A vitória no WSL Finals renderá US$ 200 mil para o campeão de cada categoria.

Eu fico incomodada, em pleno século 21, por ainda ter que comentar sobre igualdade. Deveria ser uma coisa normal, padrão, sem nenhum escarcéu. Não faz sentido, em nenhum ofício ou carreira, você se dedicar e, só por ser mulher ou ter outro tipo de diferenciação, ganhar menos que os homens. As meninas gastam a mesma quantidade de horas na água, malhando, trabalhando... Então não existe porque essa diferenciação ainda existir".

Brigitte Mayer, primeira brasileira a competir no Circuito Mundial

Que legal que eles conseguiram enxergar isso, porque a gente [homens e mulheres] faz a mesma coisa! É a mesma distância para chegar no outside, todo mundo treina igual, tem o mesmo objetivo... Por que a premiação tinha que ser diferente? Mas é merecido. Agora tem o mesmo número de etapas e a mesma premiação. Poxa, chegamos aonde a gente queria chegar, né?"

Jacqueline Silva, vice-campeã mundial em 2002

Arquivo Pessoal
Tita Tavares, bicampeã mundial do WQS

"Eu saía de casa já chorando"

Tita Tavares foi duas vezes campeã da divisão de acesso do circuito mundial feminino e, em dez anos na elite, terminou entre os dez melhores quatro vezes. Mesmo assim, viveu na pele os perrengues de dinheiro causado pela diferença na premiação. Se hoje as surfistas podem competir em Pipeline, Tita chegava ao Havaí preocupada, mesmo, em conseguir sobreviver: a premiação de um evento cobria os custos do seguinte. No final, não costumava sobrar muita coisa para levar para casa.

"Na minha época, eu saía de casa já chorando. Quantas vezes eu fui para o Havaí só com o dinheiro da passagem... Eu já cheguei a sair daqui só com 300 dólares e chegar lá, ter que pagar o pacote de sete pranchas. Era meu dinheiro todinho, os 300 dólares acabaram. Cheguei sem nada e acabei pedindo carona. Ali serviu para me dar mais gás no campeonato. Foi quando fui bicampeã mundial do WQS. Foram as vitórias aos trancos e barrancos, porque eu dependia da premiação. Eu não tinha apoio, só de Deus e do governo do estado do Ceará", diz.

Agora, vemos como vencemos no surfe feminino, vejo as meninas que ganham bem, está dando para viver, criar uma estabilidade para o futuro. Acho que não consegui ser campeã mundial por causa disso também, a falta dessa base, desse apoio, de estar se preparando, ter um funcional, ter uma equipe para me preparar para chegar 100% com emocional e físico. No meu caso, era muito desgastante. Eu tinha que sair daqui e me jogar, depender de ir bem no campeonato para ir para o próximo. Era muito complicado ter que viajar dependendo da premiação".

Tita Tavares, que, na elite do surfe feminino, foi 4ª colocada em 2000 e 5ª em 2004.

Sean M. Haffey/Getty Images/AFP
Carissa Moore e Gabriel Medina são os atuais campeões mundiais

O que ainda falta mudar

Hoje, a diferença que ainda persiste entre homens e mulheres no circuito está no número de participantes. Cada etapa masculina tem 36 surfistas, sendo 34 inscritos pelo circuito e dois convidados. As femininas têm 18 atletas, 17 do circuito e uma convidada. Ivan Martinho, CEO da WSL na América Latina, diz que o plano é igualar também isso no futuro.

"No momento, ainda temos na liga um número maior de atletas masculinos em todos os nossos circuitos. Porém, os maiores destaques e o maior nível de inovação estão vindo das mulheres. Seja nos tubos, nos aéreos, nas ondas grandes e também na média de idade das competidoras", diz.

"A nova geração do surfe feminino brasileiro e internacional está vindo com tudo, com novas estrelas no CT, nas regiões e até vindo de outros esportes, como o skate. Junto com a visibilidade que o surfe teve nas Olimpíadas, uma mudança futura no formato de número de atletas não está descartada", completa.

Tony Heff/World Surf League via Getty Imag Tony Heff/World Surf League via Getty Imag

Tati na briga e Brazilian Storm feminina à vista

Estrela solitária brasileira no circuito feminino deste ano, Tati chega em 2022 como atual vice-campeã mundial e uma das candidatas que tentarão acabar com a hegemonia de Carissa Moore, campeã olímpica e pentacampeã mundial.

Mas, se em 2022 Tati aparece solo, a expectativa é de que dias melhores virão. O nível de surfe apresentado por Sophia Medina, irmã do tricampeão mundial Gabriel Medina, de 16 anos, e Isabelle Nalu, de 14, já faz a torcida brasileira se animar com uma possível 'Brazilian Storm' (Tempestade Brasileira, como é chamada a geração de talentos do Brasil) feminina. Se com a mesma intensidade da masculina, só o tempo dirá. Mas fato é que Sophia, Belinha e outras meninas -como Laura Raupp, de 15— já vêm surfando como gente grande e chamando muita atenção.

Thiago Diz - 21.nov.21/WSL
Sophia Medina conquistou em Saquarema o maior título da carreira até agora

Em novembro do ano passado, Sophia Medina conquistou o seu primeiro grande título na carreira: o WQS de Saquarema, no Rio de Janeiro. Ainda em 2021, ela conseguiu outros dois resultados expressivos: foi às quartas de final no Layback Pro, disputado em Florianópolis, e no Corona Salinas Open, no Equador —também etapas do QS.

Inicialmente conhecida pelo reality show Nalu Pelo Mundo, Isabelle Nalu, a Belinha, também já vem brilhando. Dois anos mais jovem, ela levou a melhor sobre a amiga Sophia e venceu, no ano passado, o Rip Curl Grom Search, torneio tradicional por revelar jovens talentos do surfe brasileiro e que, nesta edição, tornou-se o primeiro campeonato do país em ondas artificiais de alta performance.

Acho que vai vir uma Brazilian Storm das mulheres com certeza, especialmente com nomes como Bella, Sophia, Laura... Todo mundo está melhorando muito e é muito legal ver a evolução das meninas no Brasil. Acho que vão continuar melhorando e vai vir essa tempestade logo menos".

Tatiana Weston-Webb

WSL

No masculino, Brasil começa sem Medina

Atual campeão, Gabriel Medina surpreendeu o mundo do surfe ao anunciar que será desfalque neste início de temporada para cuidar da saúde física e mental em meio à notícia do término do relacionamento com a modelo Yasmin Brunet. Ele já é ausência em pelo menos duas etapas, ambas no Havaí: Pipeline e Sunset.

Sem Medina, os principais brasileiros são Italo Ferreira (campeão em 2019) e Filipe Toledo (vice em 2021). Deivid Silva, Jadson André, João "Chumbinho" Chianca, Miguel Pupo, Samuel Pupo e Yago Dora completam a Brazilian Storm, que tem John John Florence como maior ameaça. O havaiano é bicampeã mundial e voltou a surfar como nunca após período afastado por lesão.

Os estreantes são Chianca, que é irmão mais novo do ex-BBB Lucas Chumbo, e Samuel, irmão mais novo de Miguel. Os irmãos Pupo serão a primeira dupla de irmãos brasileiros a competir juntos no CT desde Teco e Neco Padaratz, no início dos anos 2000.

Exclusivamente para a etapa de Pipeline, o time verde e amarelo ainda será reforçado por Caio Ibelli, que entra como substituto de Gabriel Medina.

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