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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Bolsonaro é orientado a ser 'superficial' com Putin sobre crise com EUA

Bolsonaro aponta para fotógrafos ao cumprimentar Vladimir Putin - ADRIANO MACHADO/Reuters
Bolsonaro aponta para fotógrafos ao cumprimentar Vladimir Putin Imagem: ADRIANO MACHADO/Reuters

Colunista do UOL

29/01/2022 04h00

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Resumo da notícia

  • Sob forte desconfiança de Europa e EUA, viagem de Bolsonaro para Moscou está programada para ocorrer no final de fevereiro
  • Brasileiro tenta mostrar que não está isolado no mundo e vai usar visita para dar sinalizações para grupos conservadores e exportadores no país
  • No Conselho de Segurança da ONU, governo poderá ter de se posicionar sobre crise ucraniana antes da visita de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro está sendo orientado por diplomatas a ser "superficial" com o presidente russo, Vladimir Putin, sobre a crise entre Moscou e o Ocidente. O brasileiro tem viagem marcada para o Kremlin na segunda metade de fevereiro, na esperança de mostrar para sua base que não está isolado no mundo, reforçar a agenda ultraconservadora e buscar abertura de mercado. Mas o encontro ocorre no momento de maior tensão entre americanos, europeus e russos.

No centro do debate internacional está a redefinição da ordem pós-Guerra Fria. Putin quer garantias de que a OTAN não irá se expandir para os países que fazem fronteira com o território russo e que retorne a seu posicionamento de tropas que existia antes de 1997. Já a OTAN alerta que não pode impor um veto na soberania de um país de escolher quem são seus aliados e teme que uma invasão russa ocorra na Ucrânia, o que é desmentido pelo Kremlin.

Será em meio a essa tensão e com milhares de soldados em ambos os lados da fronteira que Bolsonaro irá aterrissar em Moscou.

O temor em certas capitais na Europa é de que Bolsonaro seja usado por Putin para demonstrar que o Ocidente não está unido e que existem aliados, mesmo entre os países que se alinharam nos últimos anos com a política externa americana.

Há duas semanas, coube ao chefe da diplomacia americana, Antony Blinken, telefonar para o chanceler Carlos França. As notas de imprensa que foram publicadas após a conversa revelam a fragilidade da postura brasileira diante da pressão de ambos os lados.

De um lado, os americanos indicaram que falaram sobre a necessidade de uma "resposta forte e unida contra agressões russas". De outro, o governo brasileiro evitou qualquer condenação ou gesto conjunto de críticas contra Moscou.

O Itamaraty emitiu uma nota mais suave sobre a conversa com Blinken, apenas esclarecendo que os dois interlocutores "trocaram impressões e expressaram suas respectivas posições nacionais". De acordo com o Brasil, qualquer ação deve estar pautada na resolução do Conselho de Segurança da ONU, de 2015, que prevê medidas concretas para reduzir a tensão e respeitar a integridade territorial.

A coluna apurou que, ao eventualmente tratar da maior crise geopolítica da atualidade ou se for provocado pelos russos a comentar a situação, o governo brasileiro deve apenas citar a necessidade de que os Acordos de Minsk sejam respeitados.

Os acordos foram fechados em 2014, depois dos confrontos no Leste da Ucrânia e estabelecem obrigações para Moscou e Kiev. O entendimento assegurava um cessar-fogo entre todos os lados envolvidos no conflito. Mas a região sob disputa passaria a ganhar maiores poderes, inclusive com eleições locais. Também ficava estabelecido o fim da atuação dos grupos armados ilegais, equipamento militar, assim como dos combatentes e dos mercenários pró-governamentais.

Fé, família, carne e votos

Já Bolsonaro tem outros objetivos e que, assim como Putin, também visam o público doméstico. Ele aproveitará a viagem para consolidar uma aliança em torno de temas como religião, família e mulheres, uma agenda que agrada sua base ultraconservadora num momento eleitoral no Brasil.

Por meses, o governo brasileiro tem apoiado propostas russas no Conselho de Direitos Humanos da ONU, muitas deles contrárias à expansão de direitos para mulheres e meninas.

A viagem também tem uma agenda comercial importante, com a esperança do governo de que conseguir abertura comercial e, assim, sinalizar que o Planalto está trabalhando pelos interesses dos exportadores agrícolas.

No Itamaraty, porém, o temor é de que, no caso de sanções impostas pelo Ocidente contra Putin, as exportações brasileiras também possam sofrer.

Um dos cenários desenhados por americanos e europeus seria o de suspender a Rússia do sistema de pagamentos internacionais, conhecido como Swift. Caso isso se transforme em realidade, os exportadores brasileiros poderiam ter dificuldades em receber pelo que vendem ao mercado russo.

Num recente levantamento, economistas do IPEA apontaram que houve uma queda importante no comércio entre Brasil e Rússia nos últimos anos. Em 2008, de acordo com o estudo, o país exportou US$ 4,6 bilhões para Moscou. Mas, em 2020, as vendas caíram para apenas US$ 1,5 bilhão. Dados obtidos pela coluna a partir de levantamentos do governo indicam que, em 2021, a realidade não foi diferente.

De fato, o Brasil até mesmo passou a ser deficitário. Em 2020, as exportações russas ao país somaram US$ 3 bilhões, de acordo com o IPEA.

Mas a esperança dos exportadores brasileiros é de que o cenário mude a partir de 2022, com a entrada em vigor de um acordo que prevê a volta das exportações de carne do país.

O acordo prevê uma cota de 300 mil toneladas de carne livre de tarifas durante 6 meses, mercado que pode ser utilizado pelo Brasil. A sinalização positiva da Rússia ainda compensaria o embargo chinês sobre as carnes nacionais, também de olho em manter apoios para a eleição no final do ano.

Outro trunfo de Bolsonaro é o de anunciar a visita de inspetores russos que poderiam liberar novos frigoríficos brasileiros para ampliar as exportações ainda em 2022.

Já do lado russo, Moscou garante que não irá interromper a venda de fertilizantes. Um quinto de tudo o que o Brasil compra do exterior para garantir os insumos para sua agricultura vem de fabricantes russos e, portanto, assegurar o fornecimento também é considerado como uma pauta estratégica para o Brasil.

Brasil terá de se posicionar antes de viagem de Bolsonaro

Apesar de ter de navegar num espaço apertado entre os interesses americanos e as sinalizações russas, o governo brasileiro poderá ter de se pronunciar sobre a crise de forma oficial, antes mesmo da viagem de Bolsonaro para Moscou.

No Conselho de Segurança da ONU, o governo americano quer a convocação do principal órgão da entidade para debater a crise ucraniana.

Recém-empossado para seu mandato de dois anos no Conselho, o Brasil fez parte das consultas informais sobre o tema. Mas, numa reunião pública, terá de declarar seu posicionamento, eventualmente criando uma tensão com russos ou com americanos e europeus.

"Os membros do conselho de segurança devem examinar diretamente os fatos e considerar o que está em jogo para a Ucrânia, para a Rússia, para a Europa e para as obrigações e princípios fundamentais da ordem internacional caso a Rússia invada ainda mais a Ucrânia", disse Linda Thomas-Greenfield, a embaixadora dos EUA na ONU.