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Por que você (e Alan Moore) deveria dar uma chance a Watchmen, da HBO

Cena de Watchmen, da HBO - Divulgação
Cena de Watchmen, da HBO Imagem: Divulgação

Mariana Tramontina

Do UOL, em Nova York*

18/10/2019 04h00

Quem diz que Watchmen é só uma história em quadrinhos não entendeu nada. Escrito por Alan Moore e desenhado por Dave Gibbons, a obra de 1986 é importante (ou deveria ser) até mesmo para quem não tem intimidade com gibis. De forma bem resumida, é uma sátira cínica dos super-heróis que desconstrói esses seres poderosos e os transformam em humanos com capacidades extraordinárias, mas tão problemáticos como... qualquer humano. Em 12 edições, discute de política mundial a machismo, de questões existencialistas aos efeitos da violência urbana. Nunca algo assim existiu nas HQs antes. E nem depois.

Além do texto brilhante e do visual deslumbrante, a estrutura narrativa é tão redonda que adaptações são um desafio. Moore, um britânico preciosista, sabe disso e desdenha de toda recriação de seus trabalhos (com certa razão - tudo o que foi feito com base em sua obra até agora acabou reduzido em produtos comerciais sem alma). Por isso, quando aparecerem os créditos iniciais em Watchmen, nova série da HBO que estreia no próximo domingo, a partir das 23h, você verá apenas o nome de Gibbons creditado.

Mas não deveria: este novo Watchmen é digno de receber o nome de Alan Moore. E, principalmente, porque não é uma adaptação da mesma história e não coloca em risco o original. Damon Lindelof, um dos criadores da paranoica Lost e de The Leftovers, foi corajoso por colocar as mãos na obra em busca de algo novo a se dizer. "Minha relação com Watchmen é muito pessoal e emocional. Eu sei que muitos fãs, como eu, vão olhar quem quer que seja fazendo uma versão de Watchmen e será uma ofensa. Então minha maior preocupação era responder: 'Por que você está fazendo isso? Qual o motivo disto?'", contou Lindelof em uma conversa com jornalistas em Nova York, do qual o UOL participou.

A história de Moore era ambientada na década de 1980 e refletia aqueles tempos: o medo que os americanos tinham da Rússia e da Guerra Nuclear. A história de Lindelof é situada em 2019, 30 anos depois dos eventos acontecidos na HQ. "Eu me perguntei: 'Qual é a grande ansiedade emocional dos Estados Unidos hoje?' E a resposta para mim era a questão racial e a polícia, o autoritarismo, o medo daqueles que deveriam ser exemplos da lei abusando dela", disse o produtor. "E não falar sobre questão racial, em uma série que é sobre a América contemporânea, é ainda mais irresponsável do que pisar no calo de algumas pessoas". Ousado.

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A Sétima Cavalaria, uma milícia supremacista branca inspirada no anti-herói Rorschach
Imagem: Divulgação

Para falar de 2019, a história volta até 1921: o primeiro episódio parte de um massacre em Tulsa, Oklahoma, liderado pela Sétima Cavalaria, uma milícia supremacista branca inspirada no anti-herói Rorschach. A polícia usa máscaras para esconder suas identidades e se proteger do inimigo. A personagem central é Angela Abar (Regina King), uma investigadora aposentada —que usa o codinome Sister Night e que parece uma ninja— e que agora é dona de uma padaria, em um casamento feliz com Cal (Yahya Abdul-Mateen II) e seus dois filhos brancos. "Eu nunca vi essa mulher antes na TV, alguém que está usando tantas máscaras diferentes, e que é tão complexa", disse Regina, com uma genuína empolgação por sua personagem.

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A apropriação de Lindelof é respeitosa com os personagens originais. Laurie Juspeczyk, a Espectral, agora é uma agente do FBI (sem máscara) que usa o sobrenome de seu pai (Blake), e é vivida por Jean Smart em uma interpretação fascinante cheia de tiradas espertas. Adrian Veidt, o Ozymandias, vive solitário em uma propriedade rural, com uma arrogante elegância interpretada por Jeremy Irons e com uma deliciosa trama paralela.

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Looking Glass e sua lata de feijão
Imagem: Divulgação

Looking Glass (Tim Blake Nelson) é um mistério: ele cobre seu rosto com uma espécie de tecido espelhado que reflete o mundo à sua volta e reencena um momento que vai deixar os fãs intrigados —a famigerada cena em que Rorschach levanta sua máscara até a metade para comer uma lata de feijão.

A história dos super-heróis originais, os Minutemen, é apresentada por meio de um programa de TV chamado American Hero Story (assim como Moore escreveu uma HQ dentro da HQ, o Contos do Cargueiro Negro, aqui temos uma série dentro da série, uma ótima sacada). O ator Robert Redford (ele é mencionado, mas não aparece na série) é um presidente liberal no poder há quase três décadas, que instituiu reparações financeiras para afro-americanos descendentes de violência racial no país —uma política que, bem, deixa os racistas descontentes.

Pessoas com máscara são perigosas. Devemos ter medo delas. Porque estão escondendo algo.

Além da trilha sonora fantástica, criada por Trent Reznor do Nine Inch Nails (a música também é uma influência importante na história de Moore e Gibbons), outra ideia resgatada é a questão social por trás daqueles que usam máscaras. Que tipo de pessoa esconde o rosto do mundo? E que tipo de comportamento essa prática pode desencadear? E quem vai responsabilizar essas pessoas por seus atos? Em uma cena tão sutil quanto sagaz, Laurie (que no passado foi uma justiceira mascarada) pergunta à Angela: "Você sabe a diferença entre um policial mascarado e um vigilante?". Ela diz que não. E Laurie é clara: "Nem eu".

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Laurie Blake e os policiais mascarados
Imagem: Divulgação

Lindelof faz de Watchmen um conto de ficção científica cheio de mistério e teorias da conspiração, ao mesmo tempo em que traz a representação de uma angústia geracional, tão cruel e complexa quanto a realidade. E é audacioso o bastante para contar uma história que não é a dele. "Meu maior medo era soar exploratório, principalmente porque eu sou um cara branco contando uma história que não é minha propriedade. Por isso grande parte do processo foi trabalhar com pessoas que pudessem dizer: 'Não faça assim, faça desse outro jeito'", contou.

Para isso, ele colocou os dois primeiros episódios para serem dirigidos por uma mulher: Nicole Kassell ("Eu comecei a ler a HQ em Charlottesville, Virgínia, numa casa de pessoas apoiadoras de Trump, e que amavam a mim e meu marido chinês, e nada disso parecia fazer sentido. E esse é o mundo em que estamos", definiu a diretora sobre a diversidade contemporânea). Não há homem branco na direção dos seis primeiros episódios (de um total de nove). E quase todos eles são co-escritos por mulheres ou negros. Se Watchmen já era importante para sua época, a versão 2019 parece ainda mais pertinente: é a história contada por pessoas que a vivem de verdade.

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Imagem: Divulgação

Assista ao trailer de Watchmen, da HBO

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*A jornalista viajou à convite da HBO